Os sonhos
Você está sendo perseguido por uma pessoa em uma floresta. Ela está com uma faca com a intenção de te machucar. As arvores são contorcidas e tigres estão em cima delas. No meio da floresta você vê uma rodovia. Pensando ser uma oportunidade para fugir, você para na frente de um caso e pede ajuda. Você diz ao motorista que está sendo perseguido por uma pessoa de capuz e aponta para onde ele está. Quando você olha, ele não está lá. O motorista te segura pelo ombro e quando você vê ele é o perseguidor. Ele te puxa para dentro do carro e você cai em um poço, onde você, ossos e um tigre estão. Com medo de ser atacado pelo tigre você grita por ajuda e quando olha para cima, você vê o encapuzado acenando com a mão e tirando o capuz mostrando que é o vilão de seu filme de terror que havia visto na noite anterior. O tigre pula em sua direção e, antes que suas garras pudessem te alcançar, você acorda com um susto percebendo que tudo aquilo era só um sonho.
Muitos já passaram por algo semelhante, sonharam com assuntos imaginários e até tiveram pesadelos. O fato é tão real que fica muito difícil saber que aquilo é só um sonho. Agora, por que nosso cérebro cria uma narrativa tão elaborada enquanto dormimos, já que tudo isso não é real? Quais áreas do nosso encéfalo são responsáveis para criar essa aventura ilógica que é digna de um filme? O que nossos sonhos representam? Por que nós não reconhecemos que estamos sonhando e muitas vezes não lembramos de nossos sonhos? Tentarei responder essas perguntas nesse texto.
Os mecanismos do sonhar
Os sonhos acontecem geralmente no sono paradoxal (REM), sendo esses frequentemente estranhos, surrealistas, ilógicos e emocionais. Os sonhos que acontecem no sono de ondas lentas são mais curtos, menos vividos, menos emocionais e mais lógicos. O motivo dos sonhos do sono REM serem mais complexos e irracionais pode ser pelo fato das ondas PGO (Ponto-geniculo-occipitais), as quais tem origem na ponte, ativarem o córtex fazendo associações aleatórias que não condizem com a realidade.
Essa experiência onírica depende do funcionamento de redes neurais localizadas no sistema límbico, paralímbico e áreas associativas – giro cingulado, córtex parietal associativo, estriado, amígdala e hipocampo. Essas áreas que são muito importante no processamento das emoções. A amígdala, por exemplo, promove a recapitulação de medos e traumas, bem como pesadelos. Pessoas que possuem um transtorno de estresse pós traumático terão uma maior atividade da amígdala durante o sonho, recapitulando o seu trauma.
Uma importante via que é bem atividade durante o sonho é o sistema mesolímbico-mesocortical dopaminérgico, que envolve a área tegmentar ventral do mesencéfalo, o núcleo acumbente, o hipotálamo, o córtex pré frontal e o córtex cingulado anterior. Esse sistema, por meio do neurotransmissor dopamina, representa os estados motivacionais, levando a comportamentos para a satisfação das necessidades biológicas. Substâncias que causam dependência também atuam nesse circuito, aumentando a liberação de dopamina no núcleo acumbente, gerando a sensação de prazer.
A desativação do córtex pré-frontal dorsolateral e desinibição do núcleo accumbens e amígdala, pode explicar o conteúdo bizarro, distúrbio afetivo, alucinação e delírio que caracterizam a psicose e o sonho. Essa desativação do córtex frontal faz também com que não lembremos com facilidade dos nossos sonhos, bem como não percebemos que estamos sonhando. Isso tem o importante papel de não acreditarmos naquilo que estamos sonhando e não confundirmos com a realidade.
Significado e função dos sonhos
O significado dos sonhos sempre foi de grande interesse da humanidade. Desde as primeiras civilizações os sonhos foram alvo de estudos, desde xamãs que consideravam aquilo como sinais divinos e oráculos que viam isso como profecias. Até mesmo na Bíblia esse assunto é tratado, principalmente na história de José que interpretou os sonhos do Faraó. Mais recentemente, Sigmund Freud fez uma análise dos sonhos, o que resumidamente segundo ele a experiência onírica seria a expressão e realização de nossos impulsos e desejos do dia.
A neurociência avançou muito desde Freud, descobrindo diversos mecanismos que trabalham para criar o cenário e roteiro dos sonhos, como os que mencionei acima. Assim, observou-se que devido as áreas do sistema límbico estarem ativadas durante essa experiência, os sonhos refletem portanto memórias emotivas, nossos interesses e personalidades.
O papel da via dopaminérgica (via das dopaminas) durante a experiência onírica reflete de certa forma o que Freud disse, que nosso sonhos estariam relacionados com nossos desejos, vontades e até nossa motivação. Estudos feitos com dependentes químicos em abstinência mostraram que eles sonhavam com as substancias que possuíam dependência, assim demonstrando que os sonhos refletem também nossos desejos.
Além de seu significado, os sonhos também possuem importante função para o indivíduo. Eles podem trabalhar nossas ansiedades do dia, servir para treinar uma atividade sem que ela ocorra realmente ou até para um reprocessamento offline dos estímulos emocionais da vigília, podendo possuir um papel terapêutico para traumas e conflitos. Sem contar que podem ter o papel de proteger o sono.
Referências
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